sábado, 24 de abril de 2010

CARTA À MINHA FAMÍLIA

Querida família D.C.A,

Como vão? Nós, cá por casa, estamos bem de saúde e já estamos a preparar o plano de contingência para a epidemia que se anuncia.
Escrevo-vos, preocupado, querendo deixar-vos um alerta sobre essa doença grave que pode, a breve prazo, dizimar a nossa família.
Somos, todos, uma família especialista em produção. Nascemos e crescemos para dar ao Mundo que nos rodeia novas e rentáveis produções de alimentos que, a breve prazo, iriam erradicar a nossa deficitária produção alimentar.
Os nossos títulos, agora designados com termos pomposos, inicialmente reflectiam no nome a razão da nossa existência: Licenciados em Ciências Agrárias nas opções de Produção Animal ou Vegetal. Só lhes mudaram os nomes mas, a base curricular manteve-se. Em 1978, Portugal deixava de ser uma potência colonial, os bens alimentares oriundos das Áfricas terminavam e era preciso cuidar de alimentar um país inteiro com uma agricultura atrasada nas técnicas, atrasada na dimensão, atrasada na eficiência, atrasada na dimensão da mão de obra especializada de apoio à actividade dos agricultores. Nessa altura, já cá tínhamos técnicos válidos, Agrónomos, Regentes Agrícolas e Veterinários mas eram poucos, porque poucas eram as Universidades e Escolas técnicas que os formavam. Foi , portanto, nesse fim de década de 70 que foi criada a Maternidade que nos fez nascer e crescer. O país, nessa época e décadas posteriores, tinha 30% da população activa ligada à agricultura. Era muita gente e a produção escassa, a maioria para autoconsumo. As expectativas eram grandes, as potencialidades enormes, a tarefa árdua, o nosso futuro enquanto família promissor. Valia a pena tudo: as cadeiras de plástico com apoio lateral, a biblioteca pequena naquele espaço amplo, a falta de Professores, as aulas recebidas em bloco, as só seis salas de aula, os laboratórios ainda em montagem, a granja experimental sem experiências relevantes, as estufas montadas para o doutoramento do Engenheiro Gago da Câmara, as conversas com o Engenheiro Farias, os alojamentos precários, a vida académica dimensionada à pequenez da academia, a ilha em reconstrução. Tudo isto valia a pena porque o futuro era risonho.
Em 1984, estava eu já no 5º ano, na sala de professores do Liceu de Angra, onde eu dava aulas de agricultura, escutei o saudoso Dr. Valadão dizer preocupado, a propósito das notícias surgidas após a tomada de posse do Governo do Bloco Central, liderado pelo Dr. Mário Soares(PS) e pelo Dr. Mota Pinto (PSD), sendo Ministro da Finanças o Dr. Hernani Lopes, “o país está na banca rota”! Escutei e calei. Estava a acontecer a Portugal, naquela altura, uma coisa diversa da esperança de futuro que absorvi nos bancos vermelhos de plástico da Terra Chã. Era muito novo para perceber tudo, além de que a vida não me era, já nessa altura, fácil, razão porque tive que dar aulas para custear o meu curso. Terminado o curso, abandonado a ilha, no Continente, vivi a angustia das notícias que o Dr. Valadão me tinha dado a conhecer. E o que mais ouvi, na procura de emprego, era que no Estado estavam as vagas cheias, sobrelotadas até com a inclusão dos técnicos vindos das ex-colónias. Futuro, futuro mesmo diziam-me “é em África, trabalhar para o Samora Machel em Moçambique, porque em Angola está tudo em guerra”.
Vinte e seis anos após, as notícias no país são idênticas! Estamos à beira da banca rota, muito parecidos à Grécia.
Entretanto o que aconteceu ao nosso mercado, à nossa agricultura? A população activa na agricultura diminuiu drasticamente, a produção agrícola diminuiu também, e o numero de Licenciados em Ciências Agrárias aumentou exponencialmente. Há aqui uma contradição! A nossa entrada no mercado de trabalho, pois somos uma família que se formou com o objectivo de aumentar a Produção Animal e Vegetal, resultou afinal na diminuição da produção! Culpa de políticas erradas? É provável! 
A vida, é dos livros, dá muitas voltas! 
Há gente da nossa família nos organismos oficiais, há-os a trabalhar no sector privado, há gente a trabalhar fora da actividade para que se formou, há gente a trabalhar, simplesmente para ganhar um salário e há gente que já não consegue arranjar trabalho! Há cada vez mais gente da nossa família que não consegue arranjar trabalho! Em consequência disto, os cursos universitários estão em restruturação, as vagas a ser diminuídas e, mesmo assim, a não ser totalmente ocupadas. 
A família D.C. A. está em vias de desaparecer? 
A Terra Chã vai fechar! Mudaram-se para um edifício novo, com melhores condições materiais e pedagógicas. Os da nossa família que enveredaram pela carreira académica terão, agora, mais experiência, melhores condições para ensinar, mas que esperança transmitem eles aos seus alunos, futuros membros da nossa família? 
Querida família, certamente que, o paradigma dos novos Licenciados é diferente do nosso. Sabem que no Estado não têm futuro, nas industrias agro-alimentares também não, como técnicos, à luz dos exemplos conhecidos, que apoiam os agricultores no seu dia-a-dia, também não lhes dará satisfação aos anseios da vida moderna. O que irão eles fazer?
O Mundo está a precisar de cada vez mais comida. Produzir alimentos vai ser crucial para o futuro da humanidade em constante crescimento demográfico. Mas, atente-se, na Europa e no nosso país a população está a diminuir, significa que onde é preciso produzir e alimentar é fora da Europa. Vamos voltar àquilo que me disseram há 26 anos atrás: “emigrar para poder trabalhar em Ciências Agrárias”?
Bom, se assim for, a nossa família D.C.A. terá algum futuro,  poderão até abrir-se delegações pelo Mundo!
A ver vamos mas, estou muito preocupado!
Um beijinho às crianças, e até ao nosso próximo encontro! 
Deste vosso familiar,
Joaquim Marques

4 comentários:

António Pedro Malva disse...

Marques, tem esperança. Se já quando davas aulas o país estava à beira da banca rota e passados todos estes anos continua à beira da banca rota, é bom sinal. Sinal de que aprendemos a viver à beira da banca rota e que possivelmente teremos imunidade à banca rota!
Quanto à nossa junventude, se tiver de sair do país para vencer na vida, pois que seja. Já os nossos avós e pais o fizeram e não foram menos homens por isso. Antes isso que viver do rendimento mínimo, ou do subsídio de desemprego.

É preciso não perder a esperança e trabalhar, trabalhar, trabalhar. Porque alguns dos nossos familiares que estão bem, nem todos lá chegaram levados ao colo.

Um abraço

Luísa Benevides disse...

Meu Amigo, grande carta! Embora, considere que "pintaste" um quadro demasiado negro :s
Sou mais da opinião do Malva, "É preciso não perder a esperança e trabalhar, trabalhar, trabalhar!"

Joaquim Marques AC disse...

Trabalhem vocês que eu ando muito cansado!

Graciete disse...

Marques,
Grande reflexão! Parabéns.
Muito bem concebida, que reflecte o que se viveu e se vive, com preocupantes sinais deste momento em que a toda a hora nos transmitem indicações francamente desanimadoras.
Ocultaram a doença, vendendo saúde, e agora estamos entre a espada e a parede, sem grandes alternativas, penso.
Estão-nos a apertar o cerco e queria muito crer que sairíamos ilesos, mas...não me parece.
Confesso que num cenário negro, que não é ficção, infelizmente, mais sacrifício e ...sabe-se lá mais o que nos dirão!

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