Estávamos no dia 02 de Janeiro de 1980, quarta-feira. Era Janeiro, mês das noites de Luar e dos gatos! A geada, que cobria os lameiros daqueles vales, só se iria desvanecer com os primeiros raios de sol, mas somente nas encostas viradas a Sul. Depois da rambóia da passagem do ano, do aconchego do lar, das sopas de café com leite que a minha mãe me levou à cama no primeiro dia do ano, tinha acordado com o som do bater das enxadas nos balcões (escadaria de pedra),que os trabalhadores, da casa agrícola do meu velho, faziam propositadamente para anunciar o enrego ao serviço. Era a época da poda das vinhas. Menino e moço, com sonhos altos, muito para além do cume dos montes que teimavam em condicionar-me os horizontes, mas já com coiro para justificar as sopas, lá fui aos comandos do tractor vinhateiro Kubota, estrada fora, caminhos adiante, rasgando o frio gélido dos ares dos campos. Chegado à quinta do Val-de-Infesta, pela hora do almoço, entre uma sardinha assada servida numa fatia de broa, uma malga de vinho, e o olhar distante, entre as Serras da Estrela e do Caramulo, fui interpelado pelo Ti António - então o menino Quinzinho vai estudar para qual Universidade?- peremptório e seco respondi - Açores, Instituto Universitário dos Açores- e voltei-me para lá da serra do Caramulo, era pr'áqueles lados o meu destino. Pelas 13 horas, hora do jantar, (porque nas Beiras, os costumes da época eram antigos e de manhã desjejuava-se, por volta das 10 horas almoçava-se, o jantar era às 13 horas, a merenda às 16 e à noite a ceia) a senhora Maria, quando me entregava o prato de bacalhau com todos, acabado de fazer na panela de ferro, ali na lareira casa de cima, olhou-me e perguntou - o menino já ouviu as notícias do terramoto dos Açores?- gelei! - Qual terramoto Ti Maria?- e ela lá me contou as novidades que ouviu na telefonia. Não mais descansei, nervoso já estava, e agora esta coisa do terramoto, não consegui conter a ansiedade em chegar a casa e ligar a televisão para ver as notícias no primeiro canal.
E assim se passou o tempo, até que à noite, depois da ceia, na sala da televisão, os quatro, o meu Pai, a minha irmã, a minha Mãe e eu, fixámos os olhos no pequeno televisor a válvulas, dos poucos que a aldeia tinha, imagens a preto e branco, e silenciosamente escutámos as notícias entre imagens de horror e destruição. A minha mãe, suspirava, e nada dizia, mas num assomo de ternura e preocupação, chegou-se a mim, colocou-me a mão na cabeça e... - Quinzito, meu filho, ainda queres ir para os Açores?- permaneci silente, senti os olhares da família deixarem o écran do televisor e dirigirem-se para mim. Baixei o olhar, voltei a fixar o televisor, foram segundos que pareceram horas, fiz figas, levantei o olhar e disse-lhes - Minha Mãe, eu vou, mesmo assim, eu quero ir!
Faz hoje 30 anos que... continua.
7 comentários:
Amigo Marques, agora que a tua história toma corpo e se reveste de curvas e contra-curvas esculpidas pela mão do mestre, fico ansioso pelo enredo que se desenrolará de forma nobre, subtil mas, como é teu cunho, avassaladora tal qual terramoto de 1980... começo a gostar (assumo que fui injusto no primeiro comentário a esta tua crónica, me curvo perante ti...!)
Meu querido Marques,
Excelente relato. Excelente crónica!
Reafirmo ainda com mais firmeza tudo o que te disse aquando da 1ª crónica.
Cheia de imagens e pormenores que prendem a atenção de quem lê; não fosse uma história verídica, que se cruza em alguns aspectos com as de outros colegas -a minha também que entrei em 1982 - e que tiverem todos o mesmo destino: o DCA.
Na ilha das Flores, sei que os Florentinos utilizam ainda hoje a mesma terminologia dada às refeições que referiste.
Aguardo ansiosamente as restantes e...onde irás parar! :-)
Beijinhos
PS: estes mais novatos, como o caso do colega que acima comenta, não entendem mesmo nada disso!
Não acredites nas curvas e contracurvas dele!
Decidi que não iria responder aos comentários desta minha nova rubrica, quem gostar gosta, quem não gostar, paciência!
Mas há uma coisa que me intriga, e por isso mesmo, mais forte que eu, portanto, como não há regra sem excepção, aqui vai o reparo:
Jorge,
reparei, e não me sai da cabeça este excerto do teu comentário "...a esta tua crónica, me curvo perante ti...!)". Me curvo perante ti, parece-me um bocadinho abichanado, cheira-me a veado sul americano. Estaria contido e sem querer aflorou, ou foi um lapso?
Não de facto, é realmente meio abichanado, meio parecido com "abraços envolventes..." e mais não digo!
Marques,
Numa palavra, fantástico. Quero mais!
Aqui na Madeira há 50-60 anos atrás, o horário das refeições é esse que tão bem descreves. Como o país é pequeno!
Abraço e bom ano!
... o horário das refeições era (e não... é, como está no comentário!).
;-)
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